9.10.06

 

Evocando José Pedro Machado

Aproveito hoje esta janela mediática, para anunciar a sessão de homenagem ao Ilustre Académico, Prof. José Pedro Machado (1914-2005), que a Academia Portuguesa da História, na sua sede, no Palácio dos Lilases, na Alameda das Linhas de Torres, em Lisboa, vai realizar, no próximo dia 11 de Outubro, pelas 15h00.

Como é sabido, José Pedro Machado faleceu subitamente, na sua casa, em Lisboa, com a provecta idade de 90 anos, em 26 de Julho de 2005, pondo assim termo a uma intensa vida de estudo e de trabalho.

Informado desta sessão de homenagem por uma das suas filhas, Rosa Machado, faço daqui um apelo a todos os que se interessam por temas da Língua e Cultura Portuguesas e por figuras que as têm enobrecido para que estejam presentes nesta sessão pública que a Academia Portuguesa da História, em boa hora, decidiu levar a efeito.

Dela seguramente sairá mais divulgada e justamente enaltecida a notável figura de Investigador, Professor e Cidadão que foi José Pedro Machado.

No início de 2005, a 9 de Janeiro, num artigo que então escrevi, sobre apontamentos linguísticos, citei elogiosamente o nome honrado do Prof. José Pedro Machado, Académico Emérito, com largo currículo acumulado, numa longa vida de dedicação ao Estudo, à Investigação e à divulgação do seu multímodo saber, em especial, nos domínios da Filologia, da Língua Portuguesa e da História Pátria.

Na altura, prometi dedicar-lhe um ou mais artigos evocativos, porque me parecia amplamente merecê-los, por muitos e variados motivos, de que procurei enunciar os principais.

Em primeiro lugar, pela sua avançada idade, prenunciadora de naturais perigos para a sua saúde, urgia tributar-lhe todo o nosso apreço, pelo seu alto mérito de Professor e de Investigador e também a nossa profunda gratidão pela infatigável paciência com que ensinou várias gerações de jovens portugueses.

Por sobre essas nobres qualidades avultava ainda o seu exemplar comportamento cívico, cumprido com extraordinária afabilidade e simpatia, no convívio que connosco manteve, configurando um conjunto de virtudes difícil de reunir numa só pessoa em qualquer época considerada.

Mesmo sem dispor de elementos suficientes, ousei, logo após a sua morte, lavrar-lhe uma esforçada, porventura tosca nota biográfica, sem rebuço encomiástica, mas também animado de intenção claramente objectiva, chamando a atenção para a vasta e valiosa obra que nos deixava, onde ficavam sobejamente atestados todos os méritos que nele se reuniam.

Com efeito, julgo ser nosso indeclinável dever não nos acanharmos de enaltecer quem naturalmente o merece, sobretudo num tempo que promove tanto falso valor, tanto mérito duvidoso. Com José Pedro Machado, não estamos perante nada disto, porque ele indubitavelmente se encontra nos antípodas destas considerações.

Com os escassos elementos que a seu respeito logrei coligir e apesar da minha fraca preparação para tal tarefa, tentei com eles, ainda assim, modestamente, esboçar o seu perfil de académico e de cidadão, no que espero tenha sido bem sucedido, não por mim, mas pela figura que pretendi exaltar aos olhos dos nossos compatriotas. Fi-lo, honestamente, para ajudar a projectar a sua figura, para além dos restritos círculos académicos em que JPM era justamente conhecido, estimado e consensualmente distinguido.

O que sei da vida particular de JPM apurei-o nalguns esparsos artigos que ele mesmo escreveu, em locais diversos, sempre frugais, em consonância com a sua algo severa personalidade, que só muito contidamente o deixava falar de si próprio.

Mas, se da sua biografia os elementos me rareavam, já da sua personalidade eles me eram bastantes para o poder caracterizar, como Professor, como intelectual, como cidadão e como amigo, última condição em que com ele convivi, nos últimos anos, numa relação predominantemente epistolar.

Na verdade, foi o Dr. José Pedro Machado meu Professor da disciplina de Português, por três anos lectivos, no Ensino Secundário, na velha e reputada Escola Industrial Afonso Domingues, onde ele leccionou largos anos como Professor Efectivo, tendo nela também exercido funções directivas, em acumulação com a sua normal actividade pedagógica.

Como seu aluno, pude comprovar todo o seu vasto saber, aliado a uma competência pedagógica invulgar, de uma generosidade absolutamente excepcional e a justo título admirável.

Bastaria mencionar aqui a sua disponibilidade, num dos anos lectivos, para nos ministrar, extra-curricularmente, aulas de Alemão e de Italiano, para alunos voluntários, bem entendido, aos sábados de manhã, precioso tempo que JPM roubava às suas múltiplas tarefas e aos seus variados compromissos, para bem se aquilatar o seu carácter de educador benemérito.

Essas aulas, se não tiveram maior duração, foi tão-só porque nós, rapazes estouvados, irrequietos, pouco conscientes do mérito da sua iniciativa, lhe preferíamos a bola ou a preguiça do sono mais prolongado de fim-de-semana. De contrário, dela certamente muito mais teríamos beneficiado.

Ainda assim, se, anos depois, me dispus a aprender alguma coisa de Alemão, no Goethe Institute, ali no Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa, a ele certamente se deveu o gosto motivador dessa decisão, infelizmente, outra vez pouco aproveitada, embora por diferentes motivos. A ele também fiquei devendo um vivo interesse pelas letras, que me haveria de acompanhar pela vida fora, apesar do caminho profissional diverso que tomei, ao enveredar por uma carreira de natureza técnico-científica, que, erradamente, alguns julgam incompatível com aquele interesse.

Desse inconveniente divórcio, todos temos sido prejudicados, como muitos têm denunciado, com particular destaque para C. P. Snow, quando, há cerca de cinquenta anos, num livro que se tornou clássico, «As Duas Culturas», largamente expôs a situação de mútuo desconhecimento e até desapreço em que a cultura humanístico-literária e a técnico-científica viviam, cada vez com maior distanciamento, com as suas indesejadas mas inevitáveis consequências.

Naturalmente, que só escassos eleitos podem alcançar notoriedade equivalente em ambos os tipos de cultura, principalmente nos nossos dias, em que a especialização extrema a todos condiciona.

Há, todavia, grande vantagem para a nossa concepção do Mundo e da Vida em que as culturas humanística e técnico-científica entrem com maior equilíbrio na nossa formação, ao contrário do que sucede hoje, certamente até de forma mais agravada do que se passava quando C. P. Snow escreveu aquele importante livro.

Neste capítulo, será sempre uma sorte, às vezes uma bênção, para os jovens que encontram Mestres de excepcional categoria, numa qualquer área do saber, porque desse contacto podem despertar depois muitas das suas adormecidas vocações.

Mesmo que estas nunca venham a manifestar-se de forma exuberante ou particularmente assinalável, ficam esses jovens, pelo menos, com um benefício seguro criado para a sua vida futura, o qual se traduz em hábitos e gostos culturais definitivamente enraizados na sua formação.

Eis a enorme fortuna que a alguns é gratuitamente concedida, quando, sobretudo na sua juventude, são tocados pelos exemplos vivos desses Mestres de excepção, da estirpe de um José Pedro Machado.

Numa sessão de homenagem que lhe fizeram, quando se reformou, JPM avaliou em cerca de 10 000 o número de alunos a quem terá tido ocasião de leccionar e educar, nas suas sempre muito concorridas aulas.

Deste avultado número, muitos terão etica e culturalmente lucrado do convívio com tão excelso Mestre, alguns sem disso sequer se aperceberem. Mas, mesmo que apenas 1% daquele número tivesse tirado pleno proveito desse convívio, no seu rumo ulterior até à Universidade e, mais tarde, na vida prática, já teria saído dali uma centena de espíritos mais lúcidos e mais apetrechados, aptos a contribuirem, com proficiência, na sua justa medida, para o bem da Comunidade em que haveriam de se inserir.

Que maior orgulho ou satisfação poderá, da sua acção, um Professor retirar ?

Para muitos, parecer-lhes-á algo estranho que uma pessoa de tão alta craveira intelectual tenha permanecido tantos anos confinada a um Estabelecimento de Ensino Secundário, mesmo sabendo que JPM manteve colaboração constante com Academias e Instituições Culturais, no País e no Estrangeiro, durante toda a sua longa carreira de Professor. Ainda assim, continuará a parecer-lhes pouco relevo para tanto mérito.

Quando o evoco, na minha memória longínqua do fim dos anos sessenta do século passado, em que pela primeira vez foi meu Professor, vejo-o ainda como um homem bastante vigoroso, ágil no andar e no gesticular, rápido no discorrer, ao abordar qualquer assunto afim das nossas matérias de estudo da disciplina de Português.

Era já notória a sua popularidade entre alunos e Professores, que para ele invariavelmente nos remetiam sempre que houvéssemos de aprofundar qualquer matéria histórica, literária, linguística ou de simples cultura geral que por eles tivesse sido inicialmente tratada.

Era com toda a evidência a nossa estrela intelectual. Para aquelas virgens cabecinhas de adolescentes, um tanto perras ainda, mas ávidas de conhecimento, contactar com alguém que nos abria escancaradamente os mais variados horizontes culturais, resultava inevitavelmente num convívio de embevecida fruição.

Ainda hoje me lembro da forma como ele nos lia as medievas Cantigas de Amigo – Ai, flores de verde pinho, se sabedes novas de meu Amigo... –, os autos de Gil Vicente – Todo Mundo busca a Vida e Ninguém conhece a Morte... –, as Crónicas de Fernão Lopes – Acudi ao Paço, que matam o Mestre... – as estrofes dos Lusíadas – E, na Língua, na qual quando imagina com pouca corrupção crê que é a Latina... –, os sonetos de Camões – Alma Minha gentil... –, o Frei Luís de Sousa de Garrett – Quem és tu, Romeiro ? – o Bocage, do auto-retrato – Meão de altura, carão moreno, bem servido de pés... –, as verrinas de Filinto Elísio contra os galiparlas, o Eurico, de Herculano – Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao próprio cadáver ?...– e tantas, tantas outras passagens célebres de obras antigas, famosas da Literatura Portuguesa, até às da actualidade, do século XX, quando nos recomendava, sobretudo, a leitura de A Selva, de Ferreira de Castro, todos esses episódios desfilam na minha jubilosa memória, saciada com tanta maravilha por aquele Mestre revelada.

Nestas leituras, em plena aula, ele literalmente representava, transformando aqueles velhos textos em coloridos pedaços de vida, impressionando a nossa sensibilidade, criando-nos, a alguns para sempre, o gosto pela leitura e pelo saber.

Como era, cumulativamente, o Bibliotecário da Escola, incitava-nos a que nos tornássemos sócios da sua bem fornecida Biblioteca, pagando uma pequena quota mensal, que nos permitia levantar 3 livros de cada vez, por 15 dias, para ler em casa.

Com frequência nos chamava a atenção para a conveniência de ler bons autores, portugueses e estrangeiros e não só nomes da Literatura, mas também da Filosofia, sobretudo, franceses, Descartes, em primeiro lugar.

São personalidades deste quilate que ferem a sensibilidade dos jovens, naquela idade em que se buscam ainda as vocações, em que o carácter está em plena formação, qual matéria plástica, pronta a ser forjada na emulação dos bons exemplos encontrados.

Professores como José Pedro Machado são raros, nos conturbados dias que correm, atrever-me-ia a dizer, hoje, quase improváveis, no húmus em que se formam os actuais mestres da nossa agitada mocidade.

Por isso mesmo, é importante divulgar estes casos invulgares, surgidos, lá do fundo dessa esperançosa Humanidade, como surpreendentes cometas no nosso depauperado firmamento de valores, para, uma vez desaparecidos, as suas réplicas só regressarem, quem sabe, ao fim de muitos e muitos anos.

Ficam por contar muitos episódios interessantes do nosso convívio com JPM. Noutras ocasiões, voltarei certamente a rememorá-los, para meu próprio regozijo e também, com certeza, para o de tantos dos seus discípulos e amigos, a quem deixou saudosa e indelével lembrança.

Honra, pois, aos verdadeiros Mestres, como José Pedro Machado e que o seu exemplo possa frutificar, apesar do inquietante futuro que um tanto sombriamente se vai por aí vislumbrando.

AV_Lisboa, 09 de Outubro de 2006

Comments:
Meu Caro António Viriato:
Comovente evocação de um Homem deveras importante e cuja pequena História da Linguística é um prodígio de concisão e abundância de sumo (em ambos os sentidos) saber.
Abraço.
 
É consolador saber que em Portugal há figuras proeminentes da Cultura. Digo "há" e não "houve" porque homens como esse não morrem.
Parabéns por esta tentativa tão conseguida de não deixar cair no esquecimento José Pedro Machado.
 
Não é Professor quem quer; é-o quem sabe e merece sê-lo; não quem tem títulos académicos, mas quem cultiva a justa difusão do Saber. É Professor, melhor, Mestre, quem tem vocação para semear o Conhecimento e é capaz de o fazer.
Excelente chamada de atenção a sua.
 
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